Operários sempre andaram de bicicleta. Nas madrugadas frias e escuras, eram atropelados e, quando muito, mereciam um pequeno registro jornalístico. Além dos operários, ciclistas desportistas cruzavam nossos caminhos, em bicicletas velozes e trajes especiais. Bem sinalizados, podendo escolher seus horários e trajetos, era mais raro que morressem.
Mas os tempos trouxeram novos perfis de ciclistas. Não operários, nem desportistas, mas distribuindo-se num leque variado de idades, ocupações, interesses, classe social. Diria até que predominantemente classe média, pessoas interessadas na sua qualidade de vida e na qualidade de vida dos demais e do planeta. Alguns mais cicloativistas, outros apenas descobrindo na bicicleta um veículo fascinante que, bem usado, distribui o bem por onde passa. Mas então houve em Porto Alegre o atropelamento no dia de Massa Crítica. A primeira reação de quem não tinha a menor ideia do que era massa crítica (e continua não tendo, mesmo que a informação esteja acessível) foi de condenar aqueles que saíram a “passear” ou a “protestar” sem pedir apoio da EPTC. As imagens da ação de Ricardo Neis não deixaram margem nem mesmo para os plantonistas da imbecilidade tecerem seus comentários: um carro grande acelera contra jovens, contra senhoras, contra estudantes, contra professores, contra publicitários, contra músicos, contra escritores.
Passado o efeito dessas imagens e restando a consciência despertada para que os ciclistas fossem notados na paisagem da cidade, apareceu um novo fenômeno curioso. Qualquer pessoa normal e minimamente reflexiva haveria de se alegrar ao ver um ciclista. Ele é um carro a menos a ocupar espaço, a engarrafar, a ocupar vaga de estacionamento, ele é um carro a menos poluindo o ar de todos, ele tem muito menos condições de ser um atropelador-assassino, ele libera seu lugar no transporte coletivo para alguém poder andar sentado, ele não faz barulho e ele até faz teleentrega. Sendo o ciclista tudo isso, por que alguns se tomaram de ódio por ele? Textos rancorosos começaram a pipocar na internet e em jornais.
Só uma explicação de psicologia de botequim pode ajudar: raiva de não ser ele. Esta raiva de não ser outro persegue os seres humanos desde sempre, e eles têm incrível dificuldade de lidar com ela. A homofobia, por exemplo, parece encontrar aí uma boa explicação. No entanto, uma vez tratada, essa raiva pode ser convertida em outro sentimento. Um bom psicólogo pode ajudar a pessoa a converter a raiva doída, magoada, em algo positivo para si e para o outro. Se a pessoa já não tem idade para pedalar, se tem alguma doença, se nunca aprendeu a andar de bicicleta, se não se imagina em cima de uma bicicleta por variadas razões e, enfim, não tem coragem ou não tem como andar de bicicleta, no lugar de odiar os que andam, pode certamente buscar alguma outra coisa boa e útil ao mundo e ao planeta, que o incluirá num grupo bacana de pessoas, que o fará se sentir mais feliz, evitando assim se sentir por fora, isolado, excluído, em dessintonia com seu tempo e com a possibilidade de ser uma pessoa melhor. Por exemplo, e só para ficar num bom exemplo de ética: pode se tornar vegano! Pluct, trauma resolvido para os plantonistas recalcados. Ah, não vão me dizer que odeiam os veganos também! Aí, nem Freud pode.
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